terça-feira, 9 de junho de 2009

Minha prática

Releitura em 2007, uma publicação anual da Biblioteca Infantil e Juvenil de Belo Horizonte. Na foto, estas belezinhas contadoras de histórias, crianças que participaram de uma oficina em São João Del Rei. Após uma semana de treinamentos e brincadeiras, elas nos comoveram no trabalho final: a contação para os adultos, amigos e familiares.


Oi pessoal! Segue um trecho do artigo que escrevi para a Revista

"... Lendo para encontrar histórias que sirvam de inspiração à criação de tapetes e contando histórias essencialmente para crianças, desde este primeiro momento em que os tapetes pousaram em minha vida (1997), tenho observado alguns pontos e pretendo fazer aqui algumas considerações sobre minha prática.
Os livros infanto-juvenis são, cada vez mais, publicados com ricas e convidativas imagens, traduzindo pontos de vista inusitados e estimulantes, porém, tenho encontrado sugestivas versões mais antigas, ricas em detalhes, o que me instiga a algumas reflexões sobre algo primordial do narrar, que possa estar sendo deixado para traz, e sobre a impossibilidade do acesso a esses livros por crianças e jovens de classes sociais menos abastadas devido ao encarecimento das produções. O mesmo perigo ronda a criação de um tapete e a difusão desta técnica: o excesso, a falta e o inacessível à maioria.
As crianças muito cedo estão recebendo uma gama de informações sobre diversos assuntos que chegam a elas através de várias vias (contatos com um grande número de pessoas, linguagens múltiplas e recursos audio-visuais variados), o que as fazem rapidamente se desenvolver em termos cognitivos, porém, não necessariamente recebendo afeto e estímulo que alimente um processo amplo de formação de individualidade, ajudando a construir o que futuramente se configurará como perspectiva de vida.
Diversos autores contemporâneos fazem releituras de fábulas e lendas, quando não os “produtores culturais”, ansiosos em vender seus produtos, excluindo das obras fatos mais cruéis e elementos moralizantes em função de facilitarem a recepção destas em função de “um olhar a vida menos trágico”, porém, correm o risco de retirar destas antigas narrações elementos que compõe sua estrutura e de fornecerem às crianças informações facilitadas que não as preparam para as dificuldades e amplitudes possíveis da vida, essas obras se constroem rompendo o elo entre à fantasia e a realidade, elas estimulam a impossibilidade entre o ideal e o cotidiano. Ou vivemos no mundo da imaginação, ou na dureza das ruas.
Estamos vivendo em tempos onde o tempo parece voar com os aviões, carros velozes e metrôs, com relógios por todos os lugares, com horários marcados, noticiários e estamos a todo tempo correndo em alguma direção, tentando atingir algum ponto, com medo de perder o último lançamento ou alguma oportunidade. E toda esta histeria começa já nos primeiros anos de uma criança, quando ela se torna alvo da cobiça, pois é um pequeno consumidor em potencial que exigirá dos pais o alimento de suas vontades.
Ao mesmo tempo que a perspectiva de tempo de vida aumenta, cresce a pressa em atingir objetivos e alimentar anseios, e esta velocidade e inquietude atinge nossas crianças, que apresentam em diversas ocasiões dificuldades de atenção. Surgem, assim, ações de controlar os grupos e não educá-los. É claro que estou tecendo aqui um cenário generalizado e incorrendo no erro de colocar tudo no mesmo pote, mas pretendo falar em termos gerais, para justificar como ações de contar histórias e ler são essenciais, porque dialogam com toda esta realidade, contrapondo-a. Onde iremos parar?
Mesmo os locais menos movimentados, e que não se configuram como centros urbanos, conectam-se cada vez mais a esta nova forma ditatorial de se viver. Viver com um zumbido constante que não é o dos bichos na mata, mas o de sons de máquinas, propagandas e vozes para todas as direções. Quando não o de tiros e sirenes. Viver entre construções que escondem os solos e os céus. As pessoas. Seus sentimentos. Anseios e sonhos mais profundos.
Talvez por tudo isso, o trabalho com os tapetes tem chegado sem problemas ao público-alvo, as crianças, e de rabeira atingindo também os adultos, pais e professores. Os ouvintes (crianças e adultos) sentem-se muito à vontade quando sentam-se na roda de contação de histórias, em torno dos tapetes e, por alguns minutos, permitem-se viajar através das sugestões do contador, imaginar, ouvir e, principalmente, ser escutado quando torna-se inevitável falar, expressar-se além dos olhos e do corpo. Cada participante de uma sessão de histórias sente-se parte de um todo, que tem início, meio e fim, mas que deixa pegadas para próximos “encontros secretos”. As histórias escolhidas para virarem tapetes e serem narradas são de origem e formatos diversos, pois se busca amplitude e diversidade no oferecimento à criança. E todos parecem reconhecer o cuidado daquilo que estão recebendo. Muitos perguntam: como conseguiram “prender a atenção das crianças?” Simples e não tão simples assim: com cuidado e preparo, discernimento, acompanhando suas reações, atualizando conteúdos e buscando o inesperado no tapete e a riqueza das mensagens e conteúdos. Refinando a performance.
Falar sobre ler e narrar para crianças com o apoio de um recurso artesanal que é o tapete é falar da necessidade de tempo, silêncio, das urgências do coração, da vontade de ouvir e de expressar, é falar de troca. Mais do que falar de uma técnica especial, é falar de um modo que consegue traduzir afeto e proximidade, pois lida com pano, alinhavo, olho no olho. Não temos como fazer tapetes em série, não temos como narrar para multidões, não temos como atingir crianças de várias idades ao mesmo tempo (salvo com algumas maravilhosas histórias que permitem a façanha), não temos como capacitar muitas pessoas de uma só vez e não temos como costurar todas as narrativas em bases nesses moldes. Estas limitações que podem parecer diminuir a abrangência das atividades, acabam, ao contrário, dando um caráter todo especial e único aos encontros. Na contra mão da velocidade e dos ambientes lotados, portanto, da falta de espaço e tempo, procuramos organizar “momentos especiais”, espaços e tempos onde às pessoas envolvidas sejam convidadas a confabular sobre a vida, sem pressa. Onde o perigo não é o de perder o trem para não perder o emprego, mas o de ficar na estação e perder a possibilidade de chegar “as estrelas”.
Quando criamos um tapete, pensamos em confeccionar algo que não limite a imaginação. Um rio que corre no tapete não tem dimensões reais, não começa nem termina diante do espectador, não é uma foto, mas uma sugestão e uma representação de um pedaço do mundo. Nossas vidas em alguns momentos parecem fluir como os rios, em direção a imensidão do mar. Porém, em outras vezes, parecem nos pertencer aos pedaços, fragmentos, como os retalhos que chegam as nossas mãos como sobras de algo ou de alguém. Olhando-os e buscando um sentido para cada pedaço, unimos pequenas texturas com tecidos mais amplos. Sinto, costurando, poder transformar fragmentos em possibilidades, unir sugestão com ponto de vista preciso. Quantos mais fragmentos tenho, mais tapetes posso criar. Quantas mais histórias me chegam ou descubro, mais tapetes quero fazer. É como se a aventura não tivesse fim. Alguns tapetes não precisam de muitas variações, outros se realizam em múltiplas misturas e contrastes. Assim são as histórias, cada uma com suas especificidades. Isso tudo que gosto de dividir com as crianças. Esse processo sem fim de criação.Contar histórias para ensinar, ler para aprender sobre o outro, para me informar, ouvir para reconhecer sentimentos, contar para estimular ações, os porquês se entrelaçam e não têm fim. Narrar para mim é como jantar ou lanchar com amigos numa grande mesa. Não no barulho dos bares e restaurantes, mas nos aconchegos dos lares, nos jardins e parques. Nas praças. Talvez em cantos de sebos e bibliotecas ou nos corredores das escolas. Convidar as pessoas a tirarem os sapatos e sentarem-se no chão é como chamá-las para jogar e brincar ou para contar-lhes um segredo ou fofoca. Quase não comemos mais juntos em volta das mesas. As salas de aula, em sua maioria, são lotadas e, pais e filhos, muitas vezes mal se vêem ou não tem o que falar, pois as distâncias entre as tradições têm sido imensas. Algumas vezes falam sobre a moda, a violência, o cd ou a maquiagem. Mas sobre si mesmos... Ou temos o pai ou temos a mãe, ou um ou outro, mas o banquete familiar pouco acontece. Mas não tem problema, podemos recriar as bases, misturar as faltas e dar um drible nos gananciosos. Ou melhor, podemos talvez derreter-lhes a cera que os limitam e, se isso não for possível, vamos treinar para impor limites às suas ações. Na casa da avó brava ninguém mexe onde não deve. No mínimo, vai ter que se meter com muita engenhosidade, porque se for pego... não come os bolinhos de queijo. Assim são as narrações, entremeando impressões da realidade e fantasias. E vamos descobrindo ao ler, narrar e ouvir, que tudo pode ser diferente, ou igual, que tudo pode ser.
A história que se presentifica em certo grau no tapete, com distanciamento porque esta sendo projetada pelo contador, pode tocar e revirar muitos conteúdos individuais e coletivos. E é muito bom quando isso acontece com cuidado, o mesmo cuidado da mãe atenta com o filho, do médico com o paciente, do professor com o aluno. E não pode ser chato, porque têm outras milhares de coisas divertidas para se fazer e esse tempo, não queremos perder. O de descobrir e o de estar num mundo onde não param de acontecer maravilhas, boas e ruins, mas maravilhas. O de fazer parte de uma natureza que dialoga conosco e onde as coisas dialogam o tempo todo entre si. É preciso estar atento para acompanhar as transformações e manter-se vivo. Se for chato, podemos dar uma segunda chance, mas é preciso rapidamente mudar, encontrar uma saída. É, nessa urgência e ínterim, que o contador de histórias pode trabalhar e se divertir, entregando-se as suas histórias. Histórias que nem são tão suas assim, pois existem os autores, mas que viram tão suas que as crianças sentem-se importantes por estar recebendo algo tão particular.
Ao meu ver, o primeiro passo do contador quando escolhe uma história para contar é saber sobre o que ela fala, porque lugares passa, que pontos das pessoas pode atingir, já que o leitor-contador, foi atingido de ante-mão. O que tem de particular nessa história que a torna boa de ser contada? Ele não deve estudá-la para abarrotá-la de interpretações, para dissecá-la até a morte, mas para observar sua natureza, para torná-la suficientemente familiar, tão íntima que, ao narrá-la, possa brincar com suas peças, suas miudezas, permitindo que detalhes anteriormente não detectados possam aparecer e novos sentidos se configurar.
O contador de histórias é um canal por onde a mensagem flui, uma informação que passa pela voz, corpo, olhar e psiquismo do artista, mas que nasce num lugar outro não detectável com exatidão. Os tapetes devem apoiar o contador no sentido de guiar-lhes a viagem, que vai do imaginário ao concreto e vice-versa, e podem ajudá-lo a relembrar o estado de peculiar aptidão à brincadeira das crianças. Com os personagens em mãos, ele vai demonstrar objetivos e trajetórias que se cruzam. Na figura de condutor do fio narrativo, ele vai percorrer todo um contexto de situações que se entrelaçam e se desenlaçam como nas páginas de um livro. Com os bonecos de pano, ele vai precisar re-despertar a cada vez a capacidade de brincar, de re-viver a história com os olhares infantis atentos, procurando novas conexões, sem deixar nada de visível para trás, porque elas, as crianças, jogando com o contador, apontarão. Terá que manter desperto aquele tipo de olhar infantil que descobre o mundo sem pré-julgamentos e que recebe as informações e afetos mais imediatamente, que interage a partir de estados.
Para finalizar minhas confabulações, que tentam tecer ligações entre as necessidades primordiais dos seres humanos, a profissão de narrador, os contextos atuais que vivemos, as novas linguagens artísticas disponíveis e os sempre bem vindos livros, vou contar-lhes uma lembrança de infância que permanece latente em minha memória e que acredito morar no coração de onde surgiu a vontade de atuar e narrar. Vou lhes falar da Luiza, minha babá. Lembro-me que, por causa das obras em minha casa, e que pareciam não ter fim, ela dormia em meu quarto, no colchão ao lado da cama. Morávamos num local bem silencioso e, de noite, tudo parecia parar em São Caetano. Somente ouvíamos poucos carros que passavam às pressas e os cachorros da vizinhança. É como se no meu quarto, à noite, eu não soubesse que havia um futuro, tudo era ali mesmo. A única coisa que reconhecia sendo fora dali eram as histórias que eu não sabia exatamente onde é que tinham acontecido, mas que adorava ouvir. Não sei se para me fazer dormir, ou para reviver sua própria história e infância, Luiza me contava sobre a caatinga e a vida difícil dos dias de menina. Me contava da avó brava que nunca conheci e nunca esqueci, da janela que tinha que pular para namorar, da surra que levava, da falta de água, dos bichos que entravam na casa à noite, do boi com fome, da irmã que tinha vestidos mais bonitos, das cobras... e, de como ficou espantada com o Rio de Janeiro, quando chegou na cidade depois que ficou moça. Ouvi durante muitas noites suas lembranças. Não a podia ver no escuro, somente ouvia suas palavras proferidas com entonações especiais. Quando aprendi a ler, continuei minhas viagens ao sertão com Guimarães Rosa e outros autores. E o sertão, que até hoje não tive o prazer de visitar, vive em minha imaginação, com seu potencial de força e tristeza. Desde o momento em que fui alfabetizada até hoje, li muitos livros sobre muitas partes do mundo, mas as histórias da Luiza estão em mim como pontos de interrogação. Não sei o que entendia delas e ainda não sei o que elas querem dizer além da narração das dificuldades que ela viveu, mas sei que elas foram e são potencias. Que mobilizam e sensibilizam. E sei também, que envolvimento e afeto são essenciais para narrar, porque assim aprendi com Luiza. Hoje, quando conto alguma história que tenha a ver com o nordeste ou com o silêncio que imagino ele ter, comunico a Luiza. Comunico a mim mesma e me dou a oportunidade de chegar até um sertão imaginário. De convidar alguém para ir até lá. Acredito que posso contar histórias que nada tenham a ver com minhas vivências, mas preciso permitir-me chegar até elas, às imagens primordiais, tocar seus estímulos. Sem esta doação do contador de histórias, pode-se enriquecer uma contação com materiais de apoio, luzes, panos, objetos, preparar-se através de muitos ensaios, criar engenhosidades, escolher as melhores histórias, mas dificilmente se atingirá o coração dos ouvintes, principalmente as crianças. Luiza é para mim exemplo da importância do mediador nos processos de estímulo à leitura e aprendizagem.

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